Os perigos da condução na cidade
O condutor citadino é a priori simpático. Enquanto os excitados e os
maníacos da pontualidade se atropelam nos mais diversos transportes publicos,
ele aceita pacificamente a ideia de passar horas a fio dentro do carro. É uma
pessoa sensata que gosta de levar o seu tempo a fazer as coisas. Um ecologista,
porque, ao circular lentamente, muito lentamente, reduz ao máximo os dejectos
de gás expelidos para atmosfera. E depois tem tempo de sobra para observar o
que o rodeia. Os outros automóveis. Os peões apressados na sua irrisória
confusão. Os sinais que lhe lembram, não sem uma certa ironia, que a
velocidade máxima permitida dentro da cidade é 50 Km/h. As montras de natal.
As mulheres polícias (nunca tinha reparado como uma mulher fardada pode ser
incrivelmente atraente?). Os prédios. Esses prédios onde vivem algumas
centenas de milhar de tipos porreiros, proprietários de carros e que circulam
todos à mesma hora.
Os engarrafamentos. Ninguém consegue andar. Mas afinal de quem é a culpa dos
engarrafamentos? Não consigo acreditar que os engarrafamentos sejam unica e
exclusivamente devidos à monstrusa concentração de veículos num espaço
ridiculamente restrito. Há imensas outras coisas. Os sinais vermelhos, os
sentidos únicos, as manifestações, as obras, as saidas de escolas, tudo
coisas que deliberadamente fazem parar o trânsito. Isto para não falar nos
corredores dos autocarros qua agravam ainda mais a confusão geral. Então tem
algum jeito que, enquanto os condutores ao volante do seu automóvel circulam a
passo de caracol, os taxistas os ultrapassem com olhar de desdém, e que vejam
passar os passageiros de autocarro a gozar? Que diabo, até parece que há por aí
alguém interessado em favorecer os transportes públicos.
Mas, e além desses, será que não há mais nenhum culpado pela formação de
engarrafamentos? É claro que há, e vou passar a pontar-lhes o dedo, sem medo:
Os veículos comerciais.
Os condutores, na sua grande maioria, não são os seus proprietários, o que os
torna particularmente perigosos. Não têm medo de bater. São especialistas
incontestados em travagens brutais e inesperadas. Entre outras coisas os veículos
comerciais servem para entregar mercadorias. O que faz com que parem nos sítios
mais mirabolantes. E se por acaso mostrar o mínimo sinal de impaciência,
atiram-lhe à cara com maus modos um: "Eh pá, não vês que estou a
trabalhar, palerma!". É claro que ali, o palerma é você, que não
está a trabalhar. Para o condutor de veículos comerciais, você só está ali
para buzinar e chatear.
Os maníacos dos telemóveis.
Todos os dias nos demonstram que é rigorosamente impossível conduzir com uma mão
e telefonar com a outra. Incapazes de rodar o volante, distraídos, os maníacos
dos telemóveis são uns empatas. A única coisa que sabem fazer é impedir os
cruzamentos, esquecer-se de arrancar quando cai o verde, e ficarem ali parados
com cara de paspalhos, quando bastava que se arredassem um bocadinhos para
conseguirem passar. E o pior é que nem lhes podemos telefonar para lhes dizer
que estão a estorvar: a linha está sempre ocupada.
Os Todo-o-terreno.
Sem prejudicarem verdadeiramente a circulação, tiram a vista com as suas
viaturas demasiado altas e largas. Atrás de uma tonelada de ferro, repleto de
autocolantes Paris-Dakarou Camel Trophy, não há hipótese de
saber se o engarrafamento é causado por um veículo comercial ou por um maníaco
dos telemóveis, ou se foi apenas um velhote que foi atropelado na passadeira.
Os condutores de domingo.
Pegam no volante depois de uma semana de metropolitano, pelo que não têm
reflexos. Não sabem evoluir em massa nem descobrir uma brecha no trânsito, nem
precipitar-se sobre ela sem ter em consideração as regras básicas de
prioridade. São como burros velhos numa carga da cavalaria, atrasam toda a
gente. Única consolaço: só saem ao domingo. E ao sábado. Curiosamente, os
condutores de domingo também conduzem ao sábado...
Bem, já vimos que o automobilista citadino é constantemente impedido de
circular. Mas há pior: também o impedem de parar! No entanto, depois de ter
percorrido cerca de três ou quatro quilómetros em meia hora, e depois de ter
chegado, talvez próximo do local onde tencionava dirigir-se, um gajo tem, a
dada altura, de parar. Ora aí é que está a questão. Onde?
Tem o seu carro estacionado à porta de casa, experimente tirá-lo do
estacionamento, dar a volta ao quarteirão e voltar a estacionar. Ah, o seu
lugar está ocupado? Tente encontrar um lugar um pouco mais abaixo. Estão todos
ocupados? Que engraçado. E onde é que vai estacionar o carro agora?
Experimente noutra rua do seu bairro. O quê todas as ruas do seu bairro estão
ocupadas? Todos os bairros? Pronto, eis o que acontece todos os dias ao pobre
desgraçado que chega a casa do emprego.
Estacionamento proibido, parcómetros, linhas amarelas, passagens para peões,
ruas vedadas ao trânsito. Não tem direito de parar em parte nenhuma! E os
minutos sucedem-se intermináveis. Será que acabará por se enfiar num qualquer
parque subterrâneo onde, graças a uma penumbra propícia ao crime, o condutor
acabará agredido, roubado, violado? Não, nem pensar, vai arranjar um lugar
para estacionar a porcaria do carro. Continua a sua busca impossível. Chove
agora. Neva. Um vento terrível, repleto de granizo. A noite cai. O condutor
começa a ter fome. Tem vontade de rever a família, que o espera ao pé do
jantar ultracongelado, que se inquieta pela sua ausência. Então, num impulso
orgulhoso, com os nervos esgotados, diz um palavrão qualquer e estaciona em
qualquer lado. Sobre o passeio, em dupla fila, num corredor de autocarro!
Depois, afasta-se com as pernas vacilantes. E, logo, como num pesadelo, surge na
fresta de uma porta a figura sinistra de uma mulher polícia. Não percebe muito
bem porquê mas neste momento, a mulher polícia já não lhe parece tão
atraente como há pouco.
Alguns conselhos
de autodefesa
Como evitar as multas?
Se está mal estacionado, nem pense em deixar um cartaz AVARIADO
escrito à pressa atrás do pára-brisas. Esse truque é demasiado velho. Já
ninguém cai nele. Experimente antes o dísco médico, que obterá da seguinte
forma: chame o SOS-médico a meio da noite, dê a morada de um vizinho, e depois
aguarde que o doutor se afaste para lhe fanar o dístico, rebentando-lhe o pára-brisas
se necessário. Tão fácil como tirar o chupa-chupa a uma criança!
Outro procedimento susceptível de enternecer uma mulher-polícia: deixe
negligentemente um boné de polícia sobre um dos bancos do seu automóvel. Ou
melhor ainda: coloque um autocolante "Eu amo a polícia"
no vidro de trás.
Um método rápido e eficiente para estacionar impunemente numa passadeira:
traga sempre consigo um balde de alcatrão a ferver. Uma vez parado,
discretamente, espalhe o alcatrão sobre as riscas brancas de forma a fazê-las
desaparecer. Pronto, está feito, ninguém viu, ninguém sabe!
Como dialogar com uma mulher-polícia?
Sorria, ponha um ar descontraído e honesto (ande lá esforce-se, eu sei que é
capaz), o fundamental é empregar as palavras certas. Diga:
- A minha mãe era mulher-polícia.
- A minha tia também.
- Uma profissão extraordinária.
- O seu uniforme é muito elegante.
- Chique.
- Usa-o com muita classe.
- Você é encantadora.
- Perfeitamente deslumbrante.
- Tem tempo para tomar uma bebida?
- Quer casar comigo?
- É seu esse lindo par de seios?
- Posso tocar-lhes?
Alto! Não se mostre demasiado insistente e sobretudo mantenha as mãos quietas.
Não se esqueça que a miúda é polícia!
Não diga:
- Isto não fica assim, filha, voltarás a ter notícias minhas!
- Não sabes com quem te metes!
- Vai sair-te o tiro pela culatra.
- Eu sou o melhor amigo do ministro da Administração Interna.
- Sou sobrinho dele.
- Tio dele.
- Mãe dele.
- Sou o ministro da Administração Interna.
- Olha lá, 'tás c'o período, ou quê, minha vaca?!
Alguns outros inimigos
do condutor citadino
O pombo. Sempre senti alguma desconfiança pombo, um volátil
particularmente medíocre e traiçoeiro. Pois bem, a impressão desastrosa
confirma-se. Oculto nos beirados das casas antigas ou nas árvores, onde gosta
de permanecer por razões que só ele conhece, o pombo defeca em abundância
sobre os carros. Muito sinceramente, são capazes de imaginar brincadeiras de
mau gosto pior que esta? O pombo é um chato, ponto final!
O vândalo. É o pior inimigo do automobilista. Escorrregadio, ronda,
furando os pneusm arrancando os retrovisores, os pára-brisas, os pá-choques,
os faróis, os bancos, riscando as carroçarias com chave! Patife! Quem é ele?
Um vizinho invejoso? Um peão repleto de ódio? Um ecologista? Um membro da UGT?
Em qualquer dos casos, alguém que tem chaves. E que detesta carros bonitos. Um
conselho: compre um carro feio. Ou camufle-o debaixo de uma camada espessa de
porcaria. Não o lave! Encha-o de lama! Melhor ainda: confie-o uma tarde aos
pombos.
O ladrão. O ladrão esse, adora carros bonitos, mas gosta tanto deles,
tanto, tanto, que quer levá:-los a todos para casa. Pode proteger-se comprando
um carro blindado e seis pastores alemães. Ou um alarme sonoro. Os vizinhos
rabugentes vão barafustar, resmungando que um alarme dispara a toda a hora e
acorda o quarteirão todo. E você que tem a ver com isso? Será que todo o
quarteirão não se pode mobilizar quando se trata de defender um carro? O seu
carro?
O larápio. Só se interessa por auto-rádios, mas parte os vidros para
os roubar. Única solução: arranje um carro sem vidros.
O parcómetro. Mais um procedimento desleal. Mais uma agressão perversa.
Face ao parcómetro, o homem honesto deve apenas colocar uma questão: como
destruí-lo. E, nesse caso, oferecem-se-lhe três soluções:
- à machadada.
- à cadeçada (não se esqueça de tirar os óculos antes de bater).
- à pincelada (torne o parcómetro ilegível cobrindo-o com uma boa camada de
pintura (ou de alcatrão a ferver, se lhe tiver sobrado algum)).
O sinal amarelo intermitente. O sinal amarelo intermitente representa,
para a condução na cidade, o mesmo que o molho de menta no arroz doce: uma
invenção inumana. Ligado durante a noite, de preferência quando está a
chover e o piso se encontra ultra-escorregadio, o sinal amarelo intermitente
diz-lhe: "Anda, passa, não é preciso parar.", e diz
exactamente a mesma coisa, no mesmo momento, ao pobre diabo que vem da direita,
da esquerda. O sinal amarelo intermitente é o melhor amigo do bate-chapas.
O duas-rodas. Os cilcistas são demasiado lentos, os motociclistas são
demasiado rápidos, mas todos se obstinam em infiltrar-se entre os automóveis.
Mais tarde ou mais cedo acabarão, forçosamente por se enfiar debaixo dos seus
pneus...
O entregador de pizzas. Como reconhecer o entregador de pizzas, se ele não
passa de mais um duas-rodas? Fácil: surge diante de si em sentido proibido, a
uma velocidade louca, com a correia do capacete desapertada, ar de poucos
amigos. Impossível enganar-se. Por vezes só conseguirá reconhecê-o pelo
barulho! Um estrondo no lado do seu carro. O entregador de pizzas resolveu bater
na porta do seu carro achando que podia por aí fazer um atalho. Não adianta
protestar, ele responderia com um gesto obsceno. O entregardor de pizzas tem um
mau feitio que nem queira saber.
O peão. O código da estrada lembra-nos que "o peão é por
vezes imprevisível e indisciplinado". E acrescenta: "Um peão
deve saber e copmpreender que um automóvel não pode parar bruscamente,
sobretudo com o piso molhado". Tudo isto é muito lindo, mas teria sido
muito melhor se o código da estrada aconselhasse os peões a não sairem de
casa, ou então que não nos chateassem tanto cada vez que são atropelados por
um carro. Só num clima de calma e compreensão mútua se pode estabelecer um diálogo
construtivo.
A mulher ao volante. Não sou inimigo das mulheres, antes pelo contrário.
Senão vejam só: a minha mão é uma mulher, a minha avó e´ uma mulher. E
digo mais, metade dos meus antepassados eram mulheres. Em termos automobilístico,
que é aquilo que estamos a discutir neste momento, estou convencido, tal como
as seguradoras, que as mulheres conduzem com mais prudência do que os homens e
que são mais respeitadoras do código da estrada. E considero perfeitamente
normal que as seguradoras consintam reduções extraordinárias de tarifas. Mas,
na minha enorme simpatia para com as mulheres, chegaria a ir mais longe.
Propunha aqui a criação de zonas urbanas exclusivamente reservadas às
mulheres! Sim, ruas ladeadas de boutiques chiques, de lojas super-bem, onde as
nossas queridas mulherzinhas pudessem estacionar em dupla e tripla fila,
de se atropelarem como doidas, de abrir as portas às cegas, de fazer aquilo que
bem lhes apetecesse, como de costume. Mas sem incomodarem ninguém.
A tentação da carne. Prostitutas nos passeios, cartazes de mulheres
nuas, sex-shops, canções lascivas provenientes de bares, mulheres-polÍcias
chatas, o homem ao volante é submetido a um assédio sexual permanente dentro
da cidade. Donde algumas faltas de atenção que podem dar origem a acidentes
lamentáveis. A fim de evitar os riscos de colisão, aconselho os condutores
mais emotivos a circular bastante depressa, com os olhos baixos, olhando
obstinadamente para os pés.